quinta-feira, 28 de março de 2013

Ver e ouvir - Crónica de Daniel Teixeira

Ver e ouvir - Crónica de Daniel Teixeira
 
Eu sei que não é muito próprio estar sentado num café, ou em qualquer lugar, e ouvir a conversa que se passa entre os habitantes da mesa ao lado. Deve-se fazer ouvidos de mercador, de um mercador de silêncios, deve-se fazer de conta que não se ouve, mas ouve-se na mesma e as palavras ditas logo ali ao lado entram-nos pelo espírito dentro, sentam-se na cadeira da nossa existência e lá conquistam o seu lugar cativo.
 
Em certo sentido acabamos por fazer parte da conversa que se passa ao nosso lado, se disso não formos distraídos por outras coisas que consideramos mais importantes, emitimos interiormente aprovação ou desaprovação sobre aquilo que é narrado e criamos a nossa opinião. De meros ouvintes, consoante o teor e o interesse da conversa, passamos a ser actores nela, só que seremos sempre actores passivos. Ou pelo menos é desejável que assim seja...
 
Não se tendo passado num café o que vou contar a seguir, quero mostrar como é fácil, por vezes, passar-se de espectador a actor e em certo sentido apropriarmo-nos do próprio palco.
 
Cinema de Santo António em Faro (Já demolido)

Vem-me à memória agora um filme do Joselito «Coração de Ouro» que eu vi no defunto Cinema de Santo António, em Faro, que apresentava uma cena em que o na altura jovem Joselito vinha, já noite, após ser abandonada à sua sorte ao que me lembro, de uma travessia longa de dias de um território deserto, tropeçando com o cansaço, cheio de sede e fome e encontrou um cowboy que à volta de uma fogueira assava no espeto aquilo que parecia ser um coelho. 
 
Era pouco falador o cowboy e respondeu com um resmungo às boas noites do miúdo (acho que em termos cinematográficos ele representou um miúdo até aos vinte e tal anos) e o Coração de Ouro acabou por se sentar no chão perto dele e ficar a olhar com a pouca água que deveria ter no corpo a escorrer pela boca. Os minutos passaram-se e o cowboy não desatava nem comida nem água para o quase prostrado Joselito que de vista turvada já só via coelhos flamejantes a correr pela pradaria.
 
Demorou tempo, o cowboy estava numa de brincadeira, talvez testando a resistência do ocasional colega até que este lhe pedisse alguma coisa: água e comida (um pouco daquele coelho assado que estava logo ali, de preferência). E o Joselito, de cara esmolar mas em dizer palavra, olhava para o cantil e para o coelho que rodava no espeto, seguia milímetro a milímetro o percurso da faca do cowboy que com minúcia retirava finas fatias de carne e as levava à boca, mastigava-as, engolia, bebia um gole de água e ainda por cima fazia estalar a língua de prazer.
 
Esta comovente e sádica cena deixou o público de lágrimas nos olhos por muito tempo. Até que um habitante da plateia, não se contendo mais, se levantou e em voz bem alta, implorando e vociferando soltou um sonoro: «Dá comida ao miúdo, meu grande c...».

Claro que o drama joselitiano continuou só na tela: ninguém mais se interessou por ela; o homem, o actor do momento, o homem da hora, estava na plateia, logo ali, recebia até aplausos, embora houvesse no ar uma grande sensação de gozo.
 
Os verdadeiros actores estavam agora todos na plateia e o drama passou a comédia num ápice. E eu vi, naquela noite, aqui em Faro, em dois minutos as Origens da Comédia enquanto que Nietzsche teve de fazer um livro de razoável volume para descrever as Origens da Tragédia.
 
E o Joselito poderia ter tragicamente baqueado ali, logo nas nossas costas, à vontade do realizador que isso passou a ser indiferente.
 
Daniel Teixeira
 
Crónica

segunda-feira, 25 de março de 2013

As outras figuras típicas

 
 
As outras figuras típicas
 
Há dias, bastantes, passei por um blogue de Coimbra e acabei por me deter um pouco mais: o meu objectivo era encontrar figuras típicas algarvias e entre elas o Gaiana e outros, que fizeram parte da história da cidade de Faro. Fui ter a Coimbra chamado por uma imagem na google e por ali fiquei preso durante o tempo necessário pela reflexão do titular do Blogue «Questões Nacionais», Luís Fernandes.
 
O chavão de que as palavras são como as cerejas aplica-se usualmente nestes casos, mas o texto do Luís Fernandes chamou-me a atenção para uma outra perspectiva daquilo que faz entrar dadas pessoas dentro da denominação de «figuras típicas» sem que o sejam de facto, não porque não façam parte do ambiente citadino, não porque por exclusão de partes as tenhamos de englobar nesta denominação, mas porque, «simplesmente» não são figuras naquele sentido activo do termo, não sobressaem, não se fazem notar. E é disso que o Luís Fernandes fala e cuja dissertação eu vou aproveitar.
 
Relata o autor dois casos que são interessantes, dentro desta semi - trágica situação que é a vida em sociedade. Vou ser um pouco mais longo do que previ ao começar este texto mas interessa referir que este autor no seu blogue analisa o número de visitas ao seu Blogue de acordo com estes eventos que noticia, tentando demonstar uma plausível tese, de que «aqueles que da lei da sombra se não libertam em vida acabam por libertar-se dela após a sua morte.»
 
Cito
 
a) (...) Há um ano, na data de 26 de junho, faleceu o Luís Miguel, mais conhecido entre nós por «Aspirante» – o Luís tinha 40 anos quando num estúpido acidente adormeceu na berma do Mondego e, segundo o pai Max, veio a cair no rio. Era tratado pela alcunha de «Aspirante» precisamente porque fora a patente que tivera enquanto cumprira o serviço Militar.
 
Enquanto decorria o tempo de tropa viera a sofrer um grave desastre, em que faleceu um seu amigo. Pelos danos causados, nunca mais recuperaria o senso. Durante muitos anos vagueou pela cidade. Aparentemente, não desencadeava exteriorizações de extraordinário afeto. Parecia ser apenas mais um personagem que deambulava pelas ruas estreitas e largas do casco urbano de uma cidade velha.

Quando, nessa altura, escrevi a crónica a anunciar o seu precoce desaparecimento, para além de ter recebido mais de uma vintena de comentários dolorosos e a lamentar a sua morte, só nesse dia tive 8438 visitas aos textos que reportavam a sua passagem entre nós – a média diária de visitantes assinalados anda por volta de 500.
 
b) (...) Há dias escrevi sobre a morte súbita do Adelino Paixão, noticiada pelo jornal Diário as Beiras - o Paixão, tal como o Luís Miguel, era mais uma figura típica da Baixa que, também na aparência, poucos lhe ligavam. Nesse dia, abruptamente, o blogue disparou também o contador de visitas.
(Fim de citação)
 
A reflexão do autor sobre este facto estende-se por planos que agora aqui não cabem, tal como a nossa atitude perante o outro (o ignorado) e a nossa visão no outro (ignorado) daquilo que nós poderiamos ser e não somos, pelo que aconselho vivamente uma leitura do texto completo aqui .
 
Ora bem, e regressando ao fulcro da minha questão, eu fiz uma pesquisa, sobre as figuras típicas e encontrei referências a algumas que andaram aqui por Faro, tal como o Gaiana, O Menino Chico, O Tóki. Contudo não encontrei uma única referência ao «Marrequinho da Chaveca».
 
Certo que ele faleceu cedo, para quem tem memória dele eu teria talvez os meus dez anos ou pouco mais ou pouco menos. Não era, por aquilo que me fui lembrando uma figura extremamente popular, mas andava por aí, pela cidade.
 
Depois soube-se do seu falecimento em cirunstâncias horrorosas, num daqueles crimes que agora são juridicamente apelidados de horrendos. Apareceu na Chaveca (arredores de Faro) onde vivia numa ruína enforcado numa árvore, enfiado dentro de uma saca de juta, assassinado provavelmente por alguma «brincadeira» daquelas que por vezes são notícias nos jornais quando se trata de dementes ou pessoas com poucas capacidades.
 
Não foi morto (enforcado) e colocado dentro da saca: foi enforcado dentro da saca. Nunca se soube quem terá (terão) sido o (s) assassino(s) e duvido que naquela altura houvesse grande preocupação das entidades responsáveis para levar longe o inquérito. Afinal sempre era um «zé ninguém»...
 
E por aqui me quedo com uma reflexão sobre as reflexões do eu e do outro e do outro de nós mesmos: o que levou ao anonimato quase total do «Marrequinho da Chaveca»? Enquanto viveu muitos reparam nele, não era uma daquelas personagens descritas acima pelo Luís Fernandes.
 
Faleceu em circunstâncias marcantes. Não vi quem falasse nele. Talvez, penso eu,  porque o mais marcante na vida dele tenha sido a forma como morreu.
 
Paz à sua alma...

quinta-feira, 14 de março de 2013

O soldado desconhecido




O soldado desconhecido


Naquele dia o Narciso chamou-me, ia eu passando em frente à Igreja dos Capuchos, em Faro, que estava de portas abertas o que era sinal de que havia lá um defunto a ser velado. Ele estava à porta da Igreja quando me viu e disse-me para ir ali «ver aquilo» e aquilo era um defunto no caixão vestido com um pijama de hospital. 

Eu conhecia o moço, disse-me ele, mas eu não o consegui conhecer, não porque estivesse desfigurado mas porque não conhecia mesmo mas o Narciso insistiu que eu conhecia sim, que era um moço que morava para os lados do sítio do Escuro e que ajudava a Tia Adélia, a dona da taberna, a arrumar as grades das cervejas e noutros trabalhos mais pesados que ela já não podia fazer porque já era velhota, a Tia Adélia, e era viúva.

Eu praticamente nem conhecia também o Narciso, ele é que me conhecia a mim, pode parecer estranho mas é mesmo assim, ele falava-me sempre como se fossemos conhecidos de longa data e eu não me lembrava de alguma vez o ter encontrado senão num dia em que ele foi receber uma renda de uma casa ao escritório porque a gente tinha ficado encarregados de receber essa renda e naquele dia apareceu ele e não a mulher dele como era costume e ele então disse: «Então és tu que estás aqui? Vê lá que a minha mulher nunca me disse que eras tu que aqui estavas!» e ficou muito admirado disso mas eu também não conhecia a mulher dele assim como ele pensava que eu a conhecia e nem ela me conhecia assim como ele pensava que ela me conhecia. 

Só a conheci melhor depois, lá na Igreja, quando ela veio mas já vou a essa parte porque o Narciso estava revoltado com aquilo, achava que era uma vergonha e uma ofensa tratar assim um falecido, nem sequer lhe vestir uma roupa decente e deixá-lo ficar ali no caixão em pijama. Eu também achei mal e perguntei se ele tinha falado com os homens da funerária e ele disse que sim, tinha ido lá, era ali perto, mas eles nem sequer tinham ido ainda ver o falecido porque andavam a tratar da papelada para o funeral porque era o primeiro da tarde logo às duas horas.

Havia ali uma sequência de coisas que faziam com que o moço estivesse naquele traje, em pijama, num caixão, pois tinha sido uma agência de Lisboa que o trouxera porque ele tinha falecido em Lisboa e depois tinha-o entregue verbalmente aos seus colegas aqui em Faro. 

O moço tinha tido um AVC aqui em Faro mas tinha seguido de urgência para Lisboa, veio um helicóptero da Força Aérea e tudo, e levou-o mas lá também não tinham conseguido fazer nada e o moço tinha mesmo falecido. 

E eu conhecia o moço sim, ele tinha estado na Guiné, na tropa, e veio um pouco passado, foi o que o Narciso me disse, pouco tempo depois de voltar a mulher separou-se dele e agora não tinha ninguém e por isso andava naquela miséria a ajudar a velhota da taberna e a receber uns trocados da velhota e de outros amigos que tinham pena dele e que o ajudavam também com dinheiro, com roupas, com comida, enfim, o pobre do moço estava uma desgraça e ainda por cima acabou por ter um AVC que é uma coisa para gente com mais idade, foi o que o Narciso disse.

Quando chegou a mulher dele ela também ficou escandalizada por ver o moço naquelas condições e disse ao marido, ao Narciso, para ir a casa buscar um fato que ele tinha mais ou menos o corpo do falecido e que o fato mesmo que ficasse largo ao moço não fazia mal, mas que assim ele já ficava composto, foi o que ela disse. E o Narciso foi então a casa e ela ainda lhe gritou para ele trazer o fato preto, que já lhe estava apertado a ele Narciso e que assim ficava tudo bem.

Foi então que ela olhou um pouco melhor para mim e me disse que me conhecia do escritório onde ia receber aquela renda porque o inquilino tinha ficado zangado com eles porque eles não lhe tinham feito as obras na casa como ele queria e «nem podia ser» disse ela, com aquela renda que ele pagava levavam dez anos para reaver a despesa e não dava mesmo e a coisa tinha ficado assim, ele ia pagar lá ao escritório e eles iam lá buscar todos os meses e ter casas antigas alugadas é uma chatice. Depois lembrou-se do moço, que estava no caixão e disse que ia ali comprar uma flores porque naquela rua havia uma casa que vendia flores para defuntos quase ali em frente e eu que ficasse ali para o moço não estar sozinho.

Veio o Narciso primeiro, antes dela ter regressado com as flores e trazia dois primos que eu, segundo ele, também conhecia bem, que andavam com ele nos viveiros de ameijoa há muitos anos e que por isso mesmo eu conhecia-os e eles conheciam-me bem também. Eram bons moços e eram primos dele e começaram então a tratar de vestir o falecido levando o caixão para a sacristia e vestiram-lhe então o fato, com uma camisa branca e uma gravata escura e então o moço ficou mesmo bem pois deram-lhe também um jeito ao cabelo e só ficou a faltar as flores que vieram logo a seguir. 

A mulher do Narciso trazia uma coroa de flores bem grande, por isso demorara mais tempo, e dois ramos de flores, com papel prateado a fazer funil e perguntou-me se tinha vindo mais alguém ver o moço e eu disse que não, que tinha estado ali sozinho com ele e o marido, o Narciso, disse logo que a velhota da taberna não vinha porque desde que lhe falecera o marido não conseguia assistir a funerais mas que ele tinha dito para ela dizer aos amigos dele que ele estava ali e que eles vinham com certeza. 

O funeral era às duas horas e mesmo passando a hora do almoço acabámos por ir comer umas sandes a um café e quando regressámos já estavam lá os homens da funerária que começaram então a arrumar algumas coisas e a colocar os metais de fecho e transporte no caixão.

Chegaram mais dois moços, amigos do Chiquinho, foi quando eu fiquei a a saber o nome dele mas o nome dele não era bem esse, o pessoal é que lhe chamava Chiquinho mas ele era Diogo Francisco e foi o senhor da funerária que teve de dizer ao Padre quando ele chegou o nome todo dele que ele escreveu num papelinho e meteu entre as folhas do livro de orações que trazia.

Só éramos sete entre aqueles que podiam ser considerados amigos do Chiquinho contando comigo mas estava o Padre e mais quatro homens da funerária e o Padre disse então uma missa curta porque agora é ao pé da campa que se faz a encomenda da alma, como se costuma dizer, e seguimos depois atrás do carro funerário para o cemitério da Esperança e eu como não trazia carro fui no carro de um dos primos do Narciso.

Logo ali à porta do Cemitério há sempre vendedores de flores e fomos todos comprar mais flores porque o moço merecia, era bom moço e trabalhador naquilo que podia embora fosse um desgraçado conforme disse a mulher do Narciso que depois chorou muito quando baixaram o caixão e começaram a tapar a cova.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Os Carvoeiros de Lisboa

Os Carvoeiros de Lisboa
Eu praticamente nasci ao lado de carvoarias aqui em Faro, não propriamente aquecido pelo calor das brasas, mas tinha um vizinho que era carvoeiro e que morava duas ou três portas ao lado da minha e que por sua vez tinha um armazém de carvão no Beco Ataíde de Oliveira, o senhor Faneca, onde eu ia comprar o carvão que fazia falta lá em casa e não era só em alturas específicas de churrascadas e coisas assim.
Tínhamos um forno na casa onde morávamos na altura e a minha mãe, montanheira de raiz, cozia muitas vezes o nosso próprio pão e por ausência de lenha usava carvão.
Para além disso havia os fogões a petróleo antes do gás se vulgarizar e o dito era também comprado maioritariamente na carvoaria. A mercearia da esquina também tinha petróleo à venda, num bidon encimado por aquelas bombas manuais, iguais àquelas que mediam o azeite, mas dava mais jeito comprar o carvão e o petróleo no mesmo sítio.
Bem, antes de avançar para Lisboa, é preciso fazer notar uma coisa que normalmente é pouco difundida: algumas pessoas, sobretudo relacionadas com a venda de material energético ou com ele relacionado ou com uma incorporação grande de energia no seu fabrico, viram os seus stocks valorizarem-se exponencialmente durante o período da 2ª guerra mundial e, em parte por via disso, penso, o senhor Faneca era considerado pelo menos remediado.
Tinha casa própria, o que era uma raridade naqueles tempos mas continuava com o seu carro de mula a vender carvão de porta em porta. O carvão tem pó, como se entende, e o pó é preto como se deve saber ou calcular, pelo que o senhor Faneca quando regressava a casa depois de um dia de vendas e negócios, todo enfarruscado, entrava pela porta do quintal, despiria logicamente a roupa de trabalho, lavava-se e só depois entrava em casa. Eu não assistia a essas operações, como será claro, mas passado algum tempo do seu regresso a casa ele aparecia ou à janela ou à porta da frente impecavelmente trajado o que fazia adivinhar o seu percurso anterior.
Nesse beco que falei atrás era o seu armazém, uma casarão enorme, com o carvão «arrumado» em monte para aí com três ou quatro metros de altura e uma base de pelo menos cem metros quadrados. Era onde uma senhora estava encarregada de tomar conta da loja e vender o carvão durante o dia. Aí só havia carvão e petróleo.
Por outras razões, compra de material de construção nomeadamente telhas e tijolos avulso, frequentava amiúde duas carvoarias que havia na Rua Cruz das Mestras, onde se comprava também gesso, cal viva, cimento, etc. Assim, carvoarias em Faro, na minha memória e posso falhar, tinham como função alternativa a venda de material de construção (cheguei a comprar também azulejos lá, daqueles brancos, para casas de banho como era uso na altura).
Ora quando fui fazer um «estágio» de alguns anos a Lisboa fui viver ma zona da Alcântara, mas parece-me que este fenómeno que vou relatar mais à frente é comum em toda aquela zona (vi - por alto - até Oeiras, acrescento).
O meu tio, já falecido, excelente homem e que gostava muito de mim, entendia que me devia ensinar a ser «homem». Ele era do Norte, não que isso seja uma qualquer marca distintiva, mas a confraternização, para ele, só episodicamente passava pela bica e pelo galão: o copo de vinho, salutarmente doseado, era o pretexto para dois dedos de conversa e como ele ele era fanático pelo Atlético (que ainda jogou contra o Farense na 2ª Divisão) e como aquele pessoal por ali andava quase todo pela mesma onda, eram horas de bate papo aos fins de semana com um ou dois copos de vinho, esclareço. Não me lembro de se ter passado disso...
Ora, onde é que nós (sim, eu também!) íamos beber os copos tertulianos? No Carvoeiro. Pois era isso, o que para alguns pode parecer normal, para mim, formado na escola da carvoaria complementada com materiais de construção, foi estranho.
Claro que os Carvoeiros tinham os sectores divididos: num lado carvão, noutro lado barricas de vinho. Mas ali não se ia à taberna (talvez fosse pejorativo, não sei), ia-se ao carvoeiro. Balcão de cimento e azulejo de tampo e cobertura e era assim.
Podia terminar aqui porque a história estaria contada, mas na pesquisa que fiz verifiquei que existem muitos restaurantes em Lisboa e arredores que têm o nome de Carvoeiro e não encontrei um só aqui no Algarve.

sábado, 2 de março de 2013

O «meu» Espaldão ou Carreira de tiro em Faro

O «meu» Espaldão ou Carreira de tiro em Faro
Começando pelo princípio e porque o nome não é do conhecimento comum vai aqui uma ajuda da wikipédia:
«Em arquitetura militar, um espaldão é um anteparo de uma trincheira ou fortificação, servindo para proteger a artilharia e a guarnição que lá se encontra. Um espaldão pode ser feito de alvenaria, terra, sacos de areia, betão ou outros materiais. Também são utilizados espaldões nas carreiras de tiro, com intuito de evitar que balas perdidas saiam para o seu exterior.»
Isto da cultura é uma coisa interessante. Aqui em Faro sempre se denominou de «espaldão» todo o conjunto de terreno que abrigava a carreira de tiro onde o regimento de Faro fazia os seus exercícios de tiro.
Pois pelo que se lê acima, um «espaldão» é exclusivamente a barreira «que evita que as balas perdidas saiam para o exterior», ou seja, e vendo a foto (pode-se carregar para ver tamanho maior), o «espaldão» de Faro está situado na parte inferior esquerda e é um simples (mas enorme) monte de areia que tinha por função sofrer o impacto das balas e permitir que elas por ali ficassem.
A carreira de tiro, propriamente dita é que deve ter a denominação que é dada a todo o espaço, incluindo o tal espaldão, as fossas para os colocadores de alvos que se vêm nitidamente no enfiamento directo paralelas entre si e perpendiculares ao espaldão , e as barreiras/suporte de arma de atiradores, que conforme se pode ver estão distanciadas perpendicularmente  às fossas dos alvos com distanciamentos entre si para tiro a 50 metros, 100 metros, etc. tal como fosse da praxe na altura.
Pois bem, as fossas dos alvos permitiam que os soldados que os colocavam se deslocassem para uma posição ou outra (mais distante ou menos distante) após cada sessão de execução de tiro. Era nessas fossas que o pessoal miúdo da altura brincava (fora dos períodos de tiro, como será claro).
Antes de falar num episódio interessante que teve lugar devido à existência destas fossas laterais ao espaldão, gostaria de acrescentar que os cartuchos dos disparos eram por princípio recolhidos pelos próprios atiradores para voltarem ao quartel e serem então enviadas para a fábrica de material de guerra para recarregamento.
Lembro-me bem da ordem que era dada «Aos alvos!», altura em que o pessoal arrancava da sua posição para recolher os cartuchos e isto depois de ser assegurado que não estava mais ninguém em posição de tiro: não era preciso estar a disparar (o que acabava com um «Alto!»), bastava não estar de pé,  e era feita uma verificação sumária de que todos já tinham consumido os seus cartuchos.
Neste espaldão, onde as balas ficavam incrustadas, de metal, como é claro, era permitido que as pessoas as recolhessem. Muito particularmente o «trabalho» estava quase em exclusivo destinado a pessoas de etnia cigana ou eles tinham-no reservado para si e não me lembro de ter por lá visto outras pessoas.
Não sei o que eles faziam com esses bocados de metal, amarrotado, mas não me parece que o fossem vender ao quartel. Na verdade era de toda a conveniência manter o espaldão o mais limpo possível de balas, na medida em que estas, apesar de ser remota a possibilidade, podiam servir de factores de ricochete das balas disparadas em doses maciças em dias de exercício.
Pois bem, e regressando às valas dos alvos, houve uma altura em que supostamente apareceu um fantasma à meia noite e às quartas feiras, se não estou enganado quanto ao dia da semana.
O fantasma da carreira de tiro correu de boca a orelha e eram diversas as interpretações sobre o perfil do mesmo (fantasma) seguindo o princípio do «fulano disse que era assim, porque beltrano lhe disse que sicrano bem viu, etc.».
Aparentemente este fantasma era tradicionalista, segundo os relatos, e não dispensava o lençol branco, e era este o único ponto mais comum. Mas havia mistério, de facto, porque o dito ser do «outro mundo» aparecia à flor do terreno caminhando (ou sobrevoando) o espaço entre as duas paredes das valas, que segundo me lembro tinham talvez entre 2,5 e 3m de profundidade.
Os mais científicos, pensando num gozo de alguém o que até fazia falta naquela altura, haver um gozo, diziam que era alguém com andas (como essas que se usam nos circos) que lhe alongavam as pernas e permitiam assim que ele parecesse cerca de 3 metros mais alto, tendo por ideia que ele andava dentro das fossas ou valas.
Essa ideia tinha base mas colidia com o acidentado do fundo das valas. Qualquer pesssoa que se aventurasse a utilizar uma coisa dessas, ainda por cima com aquele tamanho, arriscava-se a dar um trambolhão ao tropeçar nas inúmeras pedras que o fundo das valas tinham, e presumivelmente a ver encarecer a sua brincadeira talvez com uma real passagem para o «outro mundo» mesmo.
A coisa tornou-se pública em Faro, sobretudo entre a malta jovem e foram cativados para a causa também alguns mais seniors, pelo que uma noite juntaram-se cerca de cinquenta a cem pessoas para «ir ver o fantasma».
Não estava previsto qualquer acto de violência contra a seguramente atormentada alma (colocava-se a hipótese de ser um soldado ali falecido por acidente) e bem esperámos mas nada.
O pessoal bem gritava «ò fantasma está na hora!!ò fantasma está na hora!!» assim que bateu a meia noite, mas nada.
Foi uma verdadeira frustração e era uma das primeiras oportunidades da minha vida para ver um fantasma, ao «vivo» e depois disso nunca vi nenhum.
Debandada geral. A partir daí nunca mais se ouviu falar no «fantasma da carreira de tiro» e os outros que foram sendo citados como frequentadores de outros pontos da cidade não tinham aquela carga emocional que aquele teve.
Tenho saudades dele...e lá para onde ele se tenha deslocado desejo-lhe as maiores felicidades embora tenha ficado muito ressentido. 
    
 Nota: A foto foi «repescada» no Blogue A Defesa de Faro. 

sexta-feira, 1 de março de 2013

Bom filme na Esplanada de S. Luís (anos 60)

Bom filme na Esplanada de S. Luís (anos 60)
Ao ver uma imagem da Antiga Esplanada do Cinema de S. Luís em Faro, mais tarde substituída por um conjunto de imóveis, lembrei-me (em alturas da Grândola, Vila Morena) que tinha eu aulas com o Zeca Afonso, na Escola Industrial e Comercial de Faro, quando entre as conversas que se iam tendo ele anunciou que ia passar nessa Esplanada (estávamos em meia estação, Junho ou Julho) o Filme «A Ilha Nua».
Fiz uma recolha sobre este filme, que já tinha procurado há meses sem o conseguir encontrar (faltava-me o nome do realizador - o japonês Kaneto Shindô) e abaixo deixo essa nota com link para o vídeo com o filme completo, mas antes gostaria de referir como foi recebido esse filme pela «crítica» farense.
Quem vive ou viveu em Faro sabe que havia uma clientela constante no (s) cinemas. Os dois que havia eram do mesmo proprietário, salvo erro Castello Lopes gerida pelo saudoso poeta e senhor da cultura farense Marques da Silva (Marmelada).
Assim essa clientela «certa» ia ver tudo o que era filme (ainda fiz isso uns quantos anos também) uma vez que a televisão era ainda rara, os programas eram pouco atractivos, enfim... e o Cinema (como local) era um excelente meio de convívio: antes dos filmes, nos intervalos e depois dos filmes.
Pois bem, os «intelectuais» bebiam o filme como mandava a praxe (mesmo que não gostassem) e os habitués protestavam contra o dito. Bem, de esclarecer que a história era interessante e já a conto lá mais para a frente, mas o filme tinha um problema que era a ausência de diálogos, ou seja, era um filme em que a única coisa que se ouvia era o ruído de fundo: do mar, do chocalhar dos baldes, do barco, enfim, os dois personagens, marido e mulher, não diziam uma palavra entre si. Dedicavam-se à sua faina por inteiro.
Ora a faina era plantar arroz numa ilhota (nua - daí o nome do filme) que não tinha água. Esta era transportada em baldes dentro de um bote, retirada nos baldes e levada a regar os pés de arroz que se estendiam por uma encosta. Todo o filme retratava isso, o dia a dia do casal, que não fazia mais nada de manhã à noite. Salvo erro nem se vê eles a comer...mas aqui passo à visão do filme.
A parte «moral» tinha lugar no fim, em que o marido ia entregar uma parte do arroz colhido ao proprietário da Ilha. O que eu me lembro bem de ter notado é que as pessoas não protestavam (aquelas que protestavam) contra a lentidão e as repetições das cenas, mas sim pelo filme não ter «palavras = diálogos».
Aconselho este filme, tendo em atenção saber-se que o cinema japonês desde há muitos anos (este filme é dos anos 60) dá cartas em termos de qualidade e inovação.
Daniel Teixeira
«A Ilha Nua», do cineasta japonês Kaneto Shindô.
O filme apresenta a rotina de uma família de pescadores que habita uma das ilhas do oeste do Japão, lugar de belas paisagens e também de desafios para a sobrevivência da família como a escassez de água e alimentos.
Apresentando nuances de documentário, “A Ilha Nua” apresenta uma poesia visual da vida do homem simples em meio às adversidades da natureza, tudo isso junto com uma trilha incidental que ganha destaque devido à ausência de qualquer diálogo no filme.
“A Ilha Nua” venceu o Festival de Moscou e foi candidato ao BAFTA, maior prêmio do cinema inglês. É um clássico do cinema japonês feito pelo diretor de “Onibaba, A Mulher Diabo”, que marcou toda uma geração de cinemaníacos no início dos anos 60.

Filme completo aqui (1h 36 m)