Os Carvoeiros de Lisboa
Eu praticamente nasci ao lado de carvoarias aqui em Faro, não propriamente aquecido pelo calor das brasas, mas tinha um vizinho que era carvoeiro e que morava duas ou três portas ao lado da minha e que por sua vez tinha um armazém de carvão no Beco Ataíde de Oliveira, o senhor Faneca, onde eu ia comprar o carvão que fazia falta lá em casa e não era só em alturas específicas de churrascadas e coisas assim.
Tínhamos um forno na casa onde morávamos na altura e a minha mãe, montanheira de raiz, cozia muitas vezes o nosso próprio pão e por ausência de lenha usava carvão.
Para além disso havia os fogões a petróleo antes do gás se vulgarizar e o dito era também comprado maioritariamente na carvoaria. A mercearia da esquina também tinha petróleo à venda, num bidon encimado por aquelas bombas manuais, iguais àquelas que mediam o azeite, mas dava mais jeito comprar o carvão e o petróleo no mesmo sítio.
Bem, antes de avançar para Lisboa, é preciso fazer notar uma coisa que normalmente é pouco difundida: algumas pessoas, sobretudo relacionadas com a venda de material energético ou com ele relacionado ou com uma incorporação grande de energia no seu fabrico, viram os seus stocks valorizarem-se exponencialmente durante o período da 2ª guerra mundial e, em parte por via disso, penso, o senhor Faneca era considerado pelo menos remediado.
Tinha casa própria, o que era uma raridade naqueles tempos mas continuava com o seu carro de mula a vender carvão de porta em porta. O carvão tem pó, como se entende, e o pó é preto como se deve saber ou calcular, pelo que o senhor Faneca quando regressava a casa depois de um dia de vendas e negócios, todo enfarruscado, entrava pela porta do quintal, despiria logicamente a roupa de trabalho, lavava-se e só depois entrava em casa. Eu não assistia a essas operações, como será claro, mas passado algum tempo do seu regresso a casa ele aparecia ou à janela ou à porta da frente impecavelmente trajado o que fazia adivinhar o seu percurso anterior.
Nesse beco que falei atrás era o seu armazém, uma casarão enorme, com o carvão «arrumado» em monte para aí com três ou quatro metros de altura e uma base de pelo menos cem metros quadrados. Era onde uma senhora estava encarregada de tomar conta da loja e vender o carvão durante o dia. Aí só havia carvão e petróleo.
Por outras razões, compra de material de construção nomeadamente telhas e tijolos avulso, frequentava amiúde duas carvoarias que havia na Rua Cruz das Mestras, onde se comprava também gesso, cal viva, cimento, etc. Assim, carvoarias em Faro, na minha memória e posso falhar, tinham como função alternativa a venda de material de construção (cheguei a comprar também azulejos lá, daqueles brancos, para casas de banho como era uso na altura).
Ora quando fui fazer um «estágio» de alguns anos a Lisboa fui viver ma zona da Alcântara, mas parece-me que este fenómeno que vou relatar mais à frente é comum em toda aquela zona (vi - por alto - até Oeiras, acrescento).
O meu tio, já falecido, excelente homem e que gostava muito de mim, entendia que me devia ensinar a ser «homem». Ele era do Norte, não que isso seja uma qualquer marca distintiva, mas a confraternização, para ele, só episodicamente passava pela bica e pelo galão: o copo de vinho, salutarmente doseado, era o pretexto para dois dedos de conversa e como ele ele era fanático pelo Atlético (que ainda jogou contra o Farense na 2ª Divisão) e como aquele pessoal por ali andava quase todo pela mesma onda, eram horas de bate papo aos fins de semana com um ou dois copos de vinho, esclareço. Não me lembro de se ter passado disso...
Ora, onde é que nós (sim, eu também!) íamos beber os copos tertulianos? No Carvoeiro. Pois era isso, o que para alguns pode parecer normal, para mim, formado na escola da carvoaria complementada com materiais de construção, foi estranho.
Claro que os Carvoeiros tinham os sectores divididos: num lado carvão, noutro lado barricas de vinho. Mas ali não se ia à taberna (talvez fosse pejorativo, não sei), ia-se ao carvoeiro. Balcão de cimento e azulejo de tampo e cobertura e era assim.
Podia terminar aqui porque a história estaria contada, mas na pesquisa que fiz verifiquei que existem muitos restaurantes em Lisboa e arredores que têm o nome de Carvoeiro e não encontrei um só aqui no Algarve.
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