quinta-feira, 28 de março de 2013

Ver e ouvir - Crónica de Daniel Teixeira

Ver e ouvir - Crónica de Daniel Teixeira
 
Eu sei que não é muito próprio estar sentado num café, ou em qualquer lugar, e ouvir a conversa que se passa entre os habitantes da mesa ao lado. Deve-se fazer ouvidos de mercador, de um mercador de silêncios, deve-se fazer de conta que não se ouve, mas ouve-se na mesma e as palavras ditas logo ali ao lado entram-nos pelo espírito dentro, sentam-se na cadeira da nossa existência e lá conquistam o seu lugar cativo.
 
Em certo sentido acabamos por fazer parte da conversa que se passa ao nosso lado, se disso não formos distraídos por outras coisas que consideramos mais importantes, emitimos interiormente aprovação ou desaprovação sobre aquilo que é narrado e criamos a nossa opinião. De meros ouvintes, consoante o teor e o interesse da conversa, passamos a ser actores nela, só que seremos sempre actores passivos. Ou pelo menos é desejável que assim seja...
 
Não se tendo passado num café o que vou contar a seguir, quero mostrar como é fácil, por vezes, passar-se de espectador a actor e em certo sentido apropriarmo-nos do próprio palco.
 
Cinema de Santo António em Faro (Já demolido)

Vem-me à memória agora um filme do Joselito «Coração de Ouro» que eu vi no defunto Cinema de Santo António, em Faro, que apresentava uma cena em que o na altura jovem Joselito vinha, já noite, após ser abandonada à sua sorte ao que me lembro, de uma travessia longa de dias de um território deserto, tropeçando com o cansaço, cheio de sede e fome e encontrou um cowboy que à volta de uma fogueira assava no espeto aquilo que parecia ser um coelho. 
 
Era pouco falador o cowboy e respondeu com um resmungo às boas noites do miúdo (acho que em termos cinematográficos ele representou um miúdo até aos vinte e tal anos) e o Coração de Ouro acabou por se sentar no chão perto dele e ficar a olhar com a pouca água que deveria ter no corpo a escorrer pela boca. Os minutos passaram-se e o cowboy não desatava nem comida nem água para o quase prostrado Joselito que de vista turvada já só via coelhos flamejantes a correr pela pradaria.
 
Demorou tempo, o cowboy estava numa de brincadeira, talvez testando a resistência do ocasional colega até que este lhe pedisse alguma coisa: água e comida (um pouco daquele coelho assado que estava logo ali, de preferência). E o Joselito, de cara esmolar mas em dizer palavra, olhava para o cantil e para o coelho que rodava no espeto, seguia milímetro a milímetro o percurso da faca do cowboy que com minúcia retirava finas fatias de carne e as levava à boca, mastigava-as, engolia, bebia um gole de água e ainda por cima fazia estalar a língua de prazer.
 
Esta comovente e sádica cena deixou o público de lágrimas nos olhos por muito tempo. Até que um habitante da plateia, não se contendo mais, se levantou e em voz bem alta, implorando e vociferando soltou um sonoro: «Dá comida ao miúdo, meu grande c...».

Claro que o drama joselitiano continuou só na tela: ninguém mais se interessou por ela; o homem, o actor do momento, o homem da hora, estava na plateia, logo ali, recebia até aplausos, embora houvesse no ar uma grande sensação de gozo.
 
Os verdadeiros actores estavam agora todos na plateia e o drama passou a comédia num ápice. E eu vi, naquela noite, aqui em Faro, em dois minutos as Origens da Comédia enquanto que Nietzsche teve de fazer um livro de razoável volume para descrever as Origens da Tragédia.
 
E o Joselito poderia ter tragicamente baqueado ali, logo nas nossas costas, à vontade do realizador que isso passou a ser indiferente.
 
Daniel Teixeira
 
Crónica

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