O soldado desconhecido
Naquele dia o Narciso chamou-me, ia eu passando em frente à Igreja dos Capuchos, em Faro, que estava de portas abertas o que era sinal de que havia lá um defunto a ser velado. Ele estava à porta da Igreja quando me viu e disse-me para ir ali «ver aquilo» e aquilo era um defunto no caixão vestido com um pijama de hospital.
Eu conhecia o moço, disse-me ele, mas eu não o consegui conhecer, não porque estivesse desfigurado mas porque não conhecia mesmo mas o Narciso insistiu que eu conhecia sim, que era um moço que morava para os lados do sítio do Escuro e que ajudava a Tia Adélia, a dona da taberna, a arrumar as grades das cervejas e noutros trabalhos mais pesados que ela já não podia fazer porque já era velhota, a Tia Adélia, e era viúva.
Eu praticamente nem conhecia também o Narciso, ele é que me conhecia a mim, pode parecer estranho mas é mesmo assim, ele falava-me sempre como se fossemos conhecidos de longa data e eu não me lembrava de alguma vez o ter encontrado senão num dia em que ele foi receber uma renda de uma casa ao escritório porque a gente tinha ficado encarregados de receber essa renda e naquele dia apareceu ele e não a mulher dele como era costume e ele então disse: «Então és tu que estás aqui? Vê lá que a minha mulher nunca me disse que eras tu que aqui estavas!» e ficou muito admirado disso mas eu também não conhecia a mulher dele assim como ele pensava que eu a conhecia e nem ela me conhecia assim como ele pensava que ela me conhecia.
Só a conheci melhor depois, lá na Igreja, quando ela veio mas já vou a essa parte porque o Narciso estava revoltado com aquilo, achava que era uma vergonha e uma ofensa tratar assim um falecido, nem sequer lhe vestir uma roupa decente e deixá-lo ficar ali no caixão em pijama. Eu também achei mal e perguntei se ele tinha falado com os homens da funerária e ele disse que sim, tinha ido lá, era ali perto, mas eles nem sequer tinham ido ainda ver o falecido porque andavam a tratar da papelada para o funeral porque era o primeiro da tarde logo às duas horas.
Havia ali uma sequência de coisas que faziam com que o moço estivesse naquele traje, em pijama, num caixão, pois tinha sido uma agência de Lisboa que o trouxera porque ele tinha falecido em Lisboa e depois tinha-o entregue verbalmente aos seus colegas aqui em Faro.
O moço tinha tido um AVC aqui em Faro mas tinha seguido de urgência para Lisboa, veio um helicóptero da Força Aérea e tudo, e levou-o mas lá também não tinham conseguido fazer nada e o moço tinha mesmo falecido.
E eu conhecia o moço sim, ele tinha estado na Guiné, na tropa, e veio um pouco passado, foi o que o Narciso me disse, pouco tempo depois de voltar a mulher separou-se dele e agora não tinha ninguém e por isso andava naquela miséria a ajudar a velhota da taberna e a receber uns trocados da velhota e de outros amigos que tinham pena dele e que o ajudavam também com dinheiro, com roupas, com comida, enfim, o pobre do moço estava uma desgraça e ainda por cima acabou por ter um AVC que é uma coisa para gente com mais idade, foi o que o Narciso disse.
Quando chegou a mulher dele ela também ficou escandalizada por ver o moço naquelas condições e disse ao marido, ao Narciso, para ir a casa buscar um fato que ele tinha mais ou menos o corpo do falecido e que o fato mesmo que ficasse largo ao moço não fazia mal, mas que assim ele já ficava composto, foi o que ela disse. E o Narciso foi então a casa e ela ainda lhe gritou para ele trazer o fato preto, que já lhe estava apertado a ele Narciso e que assim ficava tudo bem.
Foi então que ela olhou um pouco melhor para mim e me disse que me conhecia do escritório onde ia receber aquela renda porque o inquilino tinha ficado zangado com eles porque eles não lhe tinham feito as obras na casa como ele queria e «nem podia ser» disse ela, com aquela renda que ele pagava levavam dez anos para reaver a despesa e não dava mesmo e a coisa tinha ficado assim, ele ia pagar lá ao escritório e eles iam lá buscar todos os meses e ter casas antigas alugadas é uma chatice. Depois lembrou-se do moço, que estava no caixão e disse que ia ali comprar uma flores porque naquela rua havia uma casa que vendia flores para defuntos quase ali em frente e eu que ficasse ali para o moço não estar sozinho.
Veio o Narciso primeiro, antes dela ter regressado com as flores e trazia dois primos que eu, segundo ele, também conhecia bem, que andavam com ele nos viveiros de ameijoa há muitos anos e que por isso mesmo eu conhecia-os e eles conheciam-me bem também. Eram bons moços e eram primos dele e começaram então a tratar de vestir o falecido levando o caixão para a sacristia e vestiram-lhe então o fato, com uma camisa branca e uma gravata escura e então o moço ficou mesmo bem pois deram-lhe também um jeito ao cabelo e só ficou a faltar as flores que vieram logo a seguir.
A mulher do Narciso trazia uma coroa de flores bem grande, por isso demorara mais tempo, e dois ramos de flores, com papel prateado a fazer funil e perguntou-me se tinha vindo mais alguém ver o moço e eu disse que não, que tinha estado ali sozinho com ele e o marido, o Narciso, disse logo que a velhota da taberna não vinha porque desde que lhe falecera o marido não conseguia assistir a funerais mas que ele tinha dito para ela dizer aos amigos dele que ele estava ali e que eles vinham com certeza.
O funeral era às duas horas e mesmo passando a hora do almoço acabámos por ir comer umas sandes a um café e quando regressámos já estavam lá os homens da funerária que começaram então a arrumar algumas coisas e a colocar os metais de fecho e transporte no caixão.
Chegaram mais dois moços, amigos do Chiquinho, foi quando eu fiquei a a saber o nome dele mas o nome dele não era bem esse, o pessoal é que lhe chamava Chiquinho mas ele era Diogo Francisco e foi o senhor da funerária que teve de dizer ao Padre quando ele chegou o nome todo dele que ele escreveu num papelinho e meteu entre as folhas do livro de orações que trazia.
Só éramos sete entre aqueles que podiam ser considerados amigos do Chiquinho contando comigo mas estava o Padre e mais quatro homens da funerária e o Padre disse então uma missa curta porque agora é ao pé da campa que se faz a encomenda da alma, como se costuma dizer, e seguimos depois atrás do carro funerário para o cemitério da Esperança e eu como não trazia carro fui no carro de um dos primos do Narciso.
Logo ali à porta do Cemitério há sempre vendedores de flores e fomos todos comprar mais flores porque o moço merecia, era bom moço e trabalhador naquilo que podia embora fosse um desgraçado conforme disse a mulher do Narciso que depois chorou muito quando baixaram o caixão e começaram a tapar a cova.
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