sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Coluna de Manuel Fragata de Morais - A PRECE DOS MAL AMADOS - CAPITULO DOIS - OS SEM RUMO

Coluna de Manuel Fragata de Morais - A PRECE DOS MAL AMADOS - CAPITULO DOIS - OS SEM RUMO

A mudança requeria outras pólvoras, dessas que explodem
tão manso dentro de nós que se revelam apenas
por um imperceptível pestanejar do pensamento.
(Mia Couto)


Nazamba olhou pela ventanilha, angustiada e surpresa. Nunca sonhara entrar num avião, olhara-os, atónita, quando passavam raras vezes por cima da aldeia, mal se percebendo o ténue roncar dos motores, tão alto voavam. Tensa, agarrando com força a mão do pai, atravessava o turbilhão de acontecimentos e emoções ainda não deglutidos em voo baixo e veloz, rasando as escarpas aguçadas dos medos mais recônditos, que bailavam possessos de angústias.

Mal percebera o que se passara à sua volta, não apreendera o porquê dos gritos da mãe a indagar pela aldeia do soba grande, seu avô, se ela não era um dos deles, nascida e crescida na terra, com o umbigo enterrado no quintal da casa onde viera ao mundo. Confusa, não entendia o que o umbigo tinha a ver com a reviravolta repentina que a sua vida sofrera e o porquê de tudo isto.

Num torvelinho de emoções desajustadas, vira-se com malas feitas, levada com o irmão da aldeia materna para a cidade por soldados brancos nervosos e armados até aos dentes. Pela primeira vez saía da povoação onde nascera e ao chegar à cidade grande, o terror que sentiu, pronto foi substituído pela surpresa do novo mundo que se revelou à sua frente, semelhante à magia das estórias que Balanta lhe contava na surdina da noite, sempre ciente de que, não obstante ser filha do branco tinha que ser iniciada nas coisas da terra.

O que ao branco pertencia, ser-lhe-ia inculcado pelo pai e outros brancos da região, o que à terra encarnada africana incumbia, cabia-lhe a ela sua mãe, embebê-la na alma e na carne da filha.

Embasbacada, sentiu medo quando pelas ruas de Luanda o pai os conduziu da pensão para o consulado português e vice-versa. Os carros, os passeios, as montras das lojas, o ror de gente branca nunca por si vista, e, por fim, o mar. O mar deslumbrara-a por completo. Na primeira vez que o pai os levou à praia, um pouco para mitigar o redemoinho em que suas vidas se tinham transformado, as conchas que avidamente recolheu, levou-as sigilosamente em caixa preciosa de cartão para Portugal. Foram, durante muitos anos, as vozes que a chamavam à terra materna, nelas embrulhava a alma quando a imensidão da saudade apertava.

Nelas ouviu a voz da mãe e a memória do irmão desaparecido, entre ruídos estranhos que lhe lembravam o manso bater das ondas na areia de onde as recolhera e, por entre o ciciar do vento, às vezes, o uivar dos cães pelas ruelas da aldeia em noites escuras, ao farejarem a onça ou da hiena quando rondavam os currais.

No dia do embarque, Tomás, aterrorizado com o que ouvia os brancos falarem abertamente pelos sítios em que passara seguindo o pai e a irmã, não desejou partir para a terra do progenitor, fugiu e entregou-se ao primeiro soldado angolano que encontrou. Falou-lhe na língua da mãe, dizendo que era órfão e que não queria ir para onde os portugueses o estavam a levar. Conduzido ao comandante na pequena delegação, manteve a mentira. Este, precisando de soldados e visto a criança expressar-se na língua que lhes era comum, sem muitas perguntas, ficou com ele.

Leia este tema completo a partir de 14/2/2011

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