sábado, 5 de fevereiro de 2011

Crónicas soltas - Por Daniel Teixeira - A huskvarna

Crónicas soltas - Por Daniel Teixeira - A huskvarna

Lembranças, recordações, saudades...são só as boas.
Tenho já falado por várias vezes nisto, aliás falo sempre nisto, desta forma, quando me refiro ao passado. Aquela parte do passado que nós vamos buscar nas nossas recordações é na sua larga parte o bom naco do tempo, a parte idílica, a parte melhor, o presunto, o cozido de couve, o arroz doce, ou mesmo as «nuvens» ou «sonhos» ou as filhoses, as empanadilhas com batata doce, o bom pão saído do forno e comido, logo ali, partido aos bocados com as mãos e mergulhado num prato de esmalte florido e decorado com mais um fundo de azeite bem verdinho e sal grosso.

Que belo momento meu deus, este do pão, que belo tempo, que bela lembrança, que coisa simples e que ideia nova que os montanheiros foram buscar: viver no simples, com meios simples e fazer deles, desses meios simples, dessas coisas simples, valorosos momentos: lembro-me bem do largo sorriso da minha mulher, citadina de gema, quando foi confrontada com esta inusitada merenda e este inusitado momento.

Sentada nas pedras soltas da cerca - ela que ainda hoje tem medo das então abundantes lagartixas - e mandando também às urtigas os receios com a manutenção da «linha», era vê-la a molhar o pão e a rir como uma criança crescida. Pão quente com azeite e sal: quem se lembraria disso?

Pois...eles, os montanheiros, as mulheres dos montanheiros trouxeram esse momento desde o tempo dos seus avós e bisavós e mais que se lhe segue para trás : passavam homens e mulheres vindos das hortas chocalhando as asas dos baldes e a Ti Chica, a mulher do «tiro e queda», via o seu pão cozido a desaparecer mas não se importava: ela tinha tempo, com três filhas e meia dúzia de hortas para regar, marido sempre ausente no pastoreio, tinha tempo...naquele tempo ela tinha tempo. Hoje, já não (!)...ou tem todo o tempo do mundo.

A última vez que a vi, passados não muito largos anos, andava com um andarilho arrastando-se pela casa e era tão diferente, tão diferente, a Ti Chica, a mulher do «tiro e queda» ... O tempo é de facto um cavalo, como dizia o meu Tio Zé Teixeira, expressão que na altura e agora se compreende bem e talvez melhor por aqueles lados...pelos lados da serra. Anda muito depressa, o tempo, tão depressa que nem o vemos. Mas ele passa mesmo e deixa rastos bem vincados na terra e muito mais ainda nas pessoas.

O «tiro e queda», o marido da Ti Chica cujo nome real não me vem à memória tal a sua falta de ligação ao Monte, era pastor, daqueles pastores de grandes rebanhos, de centenas de cabeças. Durante os tempos que por lá andei ainda miúdo vi-o apenas uma vez, já de partida, calças repletas de remendos bem certinhos, como era uso, seifões de pele de ovelha acorreados na cintura e nas pernas, quatro ou cinco camisas e blusas «para não deixar entrar o calor» e o indispensável colete de bolsinhos elevados mostrando correntinhas de ferro presas nas botoeiras: canivete, bolsa de tabaco, isqueiro, carteirinha, tudo era preso à roupa por aqueles lados. Deixar cair alguma coisa era nunca mais a encontrar no meio das pedras, das ervas, do chão crestado ou enlameado, no emaranhado de estevas.

Leia este tema completo a partir de 7/2/2011

1 comentário:

  1. Crônica deliciosa, repleta de lembranças, cheiros, cores, ventos e saudades. Eu bem que gostaria,um dia, de conhecer o Monte!Parabéns!

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