sábado, 12 de fevereiro de 2011

Sal e pimenta - Reflexão de Michel Crayon

Sal e pimenta - Reflexão de Michel Crayon

Não sei se vou conseguir descrever exactamente o que se passou nem sequer me interessa agora estar aqui a dissecar de uma forma exaustiva se aquilo que escrevo é exactamente aquilo que aconteceu porque isso, essencialmente, neste momento não interessa, não tem sumo nenhum, não marca, não conta na estatística nem no fundo substancial do início desta estória.

Mesmo que estas minhas pobres letras venham agora ou mais tarde apenas a aflorar o acontecido parece-me certo que será sempre dito o suficiente para que haja um bom entendimento dos factos, porque de factos se trata, de coisas que aconteceram, de eventos...e nada de imaginação ou «invenção» minha.

O importante, e o que se passou de facto e que é verdadeiramente marcante, porque é afinal o começo e o meio do conjunto circunstancial (e estrutural também, não esquecer) que pretendo descrever foi que ela, (a A. aqui só A. por conveniência de anonimato) me agarrou repentinamente na mão direita e tal como se estivesse possessa sei lá pelo quê ou porquê - eu bem sei que ela estava possessa porque vi os seus olhos semi raiados com as mini veias oftálmicas parecendo quase troncos de árvore - e...apanhando-me desprevenido - o que nunca seria difícil, diga-se, porque estava a dar futebol na têvê - ela, a A., derramou por várias vezes uns amontoados de sal despejado de um saleiro de plástico que trazia consigo na bolsinha e cuja tampa azul escancarara ali mesmo, à minha frente. Não vi a marca, e lamento...

Quase de seguida ou ao mesmo tempo, começou - e para meu grande espanto - "simplesmente" (e este «simplesmente» tem o seu quê de ironia magoada) e de cada vez que despejava o sal na minha mão, não a lamber-me a mão (o que eu toleraria e o meu ego sedento desejaria) mas a lamber o sal que ia despejando cada vez mais intensamente nas costas da mesma (era a direita - para que conste de novo - e então livre de anéis).

Estupefacto desde o início e mantendo sempre a estupefacção a níveis de uma razoabilidade roçando o envergonhado corante, perguntei-lhe balbuciando se quereria também pimenta, mas ela, a A., de tão absorta que estava no debruço nem me respondeu, coisa que eu abomino, que me não respondam quando faço uma pergunta importante, como o era neste caso.

Tive de ser eu a tomar a iniciativa porque havia que fazer algo, o que não quer dizer que esse algo que havia a fazer fosse exclusivamente aquilo que eu fiz, mas eu estava naquela situação de embaraço muito conhecida por todos os tímidos e optei por pegar num frasco de vidro com pimenta que estava sobre a mesa, ao lado do frasco do sal (um outro, este em vidro) e também ao lado de um exterior galheteiro e ainda de uma molheira quase vazia de um molho branco, bechamel, penso eu, porque não cheguei a prová-lo durante a refeição que antecedeu o acontecimento que agora descrevo como sendo central nesta estória.

Comecei a acompanhá-la vertendo pimenta sobre o sal que ela ia borrifando sobre as costas da minha mão e ela ia vertendo sal sobre a pimenta que eu conseguia despejar por aqueles buraquinhos pequeninos que todos conhecem e aquilo tornou-se para mim e para quem nos via uma perfeita loucura.

Leia este tema completo a partir de 14/2/2011

Sem comentários:

Enviar um comentário