quinta-feira, 25 de novembro de 2010

DESALMAR - Por Manuel Fragata de Morais

DESALMAR - Por Manuel Fragata de Morais

A Vuíla Sabata fugira-lhe a assustada alma.
Precisamente às catorze horas e vinte e cinco minutos do dia 15 Junho de 1975, quando, emaranhado na mais recôndita raiva animaleja, entre medos incompreensíveis e razões descontroláveis, esvaziou o carregador da Aka no crânio de um soldado já morto, mas ainda e para sempre inimigo.

Com a cabeça feita passador, tantos eram os buracos, o espírito do falecido, quem desfalece morte arrogante vira alma vadia, manteve-se no corpo mais cinco horas.
O que observava lá fora amedrontava-o, como é sabido, as sombras só se habituam a tal, depois dos vivos apagarem a luz que as faz vaguear, o esquecimento, portanto com eles não mais bulindo. Assim, acanhou-se, sobretudo por não ter a certeza do furo mais seguro por onde escapulir.

Acabrunhado, no seio de tanto miolo esfarelado e sentindo-se ainda matéria, não entendia por que Sabata, não obstante pertencerem a partidos políticos armados diferentes, esvaziara na cabeça de seu corpo, já inerte, todo um carregador de Aka, enquanto o pontapeava feito louco desvairado, até se sentir exaurido.
Em circunstâncias similares, teria ele feito o mesmo?

Com este receio mais do que natural, não apreendendo que doravante seria mera essência desincorporada e que as balas intrusamente lhe haviam subtraído a descartável matéria, o espírito do soldado inimigo de Vuíla Sabata, optou por habitar aquela moradia desumana enquanto fosse possível ou permitido, o esburacado crânio de que fora dono.
Todavia intuía a mudança e estranhava não se achar ambientado. Faltava ao corpo inerte a ligeireza física habitual, o reboliço das correrias pelos bairros pobres da cidade desconhecida, para onde viera impor a desliberdade do seu partido armado, em relação ao outro.

Dali a umas horas estaria escuro, e seu cadáver velado por cães vadios e esfomeados. Seria a hora do adeus mundano. Por enquanto ia-se entretendo a observar a rigidez a assenhorar-se do corpo, ao qual durante dezoito anos se colara e apegara.
Pasmado, descobriu novas perspectivas, como, por exemplo, a de ver de perto as rodas dos poucos carros que ousavam passar naquela rua, raspando-lhe o furado crânio. Porque não o socorriam? Unicamente os cães a rondá-lo, farejando, farejando e gemendo arreganhados ganidos em alimentadas esperanças de lauta ceia.

As dezanove horas ganhou coragem, e de um pulo, saiu lesto pelo furo de bala mais cerca.
Alguns dos cachorros, trespassados por uma súbita corrente fria, fugiram como se alguma turba de garotos os tivesse apedrejado. Outros sentaram-se no alcatrão deserto a uivar, até que uma rajada curta de metralhadora os pôs em silvante debandada.


Leia este tema completo a partir de 29/11/2010

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