sábado, 6 de novembro de 2010

O rabo da Etelvina - Reflexão de Michel Crayon

O rabo da Etelvina - Reflexão de Michel Crayon

Ser criança tem os encantos próprios de se ser criança e é espantoso como, vendo pelos olhos de hoje, verificamos como somos pouco exigentes quando somos crianças. A Etelvina era uma moça um pouco mais velha que nós, no nosso grupo, grupo esse que variava conforme o local onde nos encontrávamos e que não tinha limites cerrados de idade mas era sim delimitado pelas brincadeiras que cada um assumia.

Não falo de jogar futebol, que isso era comum, ou hóquei em campo, com sticks feitos de um pau com uma madeira pregada no vértice inferior. Tudo isto numa rua de terra batida onde por volta das cinco horas da tarde tínhamos de retirar as balizas (duas pedras a fazerem de poste em cada lado) porque passava o único carro que existia na zona e o senhor era boa pessoa mas muito chato e como a mulher dele nos andava sempre a oferecer suspiros de açúcar tínhamos a deferência para com ele de lhe desimpedir o caminho para evitar que ele tivesse de travar uma antiguidade que a existir impecável como naquele tempo valeria milhões hoje.

Mas a Etelvina faz parte de um outro universo, sem carros automóveis, que era onde íamos passar parte das férias grandes: metade praia, metade campo, era assim. A terra onde íamos, eu e meus irmãos, tinha já os grupos formados, havendo selecções que eu não compreendo agora, mas que na altura aceitava bem.

Nós não éramos ricos (nem pensar!) mas entrávamos no grupo dos filhos dos lavradores e dos filhos dos seus serviçais. Estes grupos, por sua vez dividiam-se de acordo com as rivalidades locais dos patriarcas: a nós, como estranhos e veraneantes era-nos facultada a possibilidade de ultrapassar essas rivalidades instituídas, normalmente resultantes de divisões familiares por questões de heranças, uma vez que haviam relações de parentesco entre os tais de rivais.

A Etelvina era borderline neste aspecto; ou seja, embora servisse (era mais ou menos criada numa exploração de trabalho infantil que era muito comum naquele tempo) numa casa de lavradores quase secularmente desavindos com outros, era frequente encontrá-la quer indo buscar duas ou três cabras leiteiras, ou mesmo numa horta a colher tomate ou outro legume qualquer ou a lavar roupa numa pedra pousada sobre um tanque alinhavado, mas não tinha relação de dependência para com nenhum grupo porque a sua família não tinha quaisquer terras.

Era a única família que não tinha, pelo menos, um naco de terra, umas hortitas e umas courelas para a lavoura e toda a família vivia do trabalho que outros lhes davam: a mãe da Etelvina caiava casas, fazia limpezas, daquelas anuais e era chamada para cozinhar ou para ajudar no amassar da farinha e no cozimento do pão em dias em que os comensais eram mais numerosos ou mesmo quando havia um qualquer baptizado ou um casamento, o que era raríssimo pois aquele burgo talvez não contasse com mais de quinhentas pessoas.

Leia este tema completo a partir de 08/11/2010

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