sábado, 6 de novembro de 2010

Teoria do Conto Breve - Por Abílio Pacheco

Teoria do Conto Breve - Por Abílio Pacheco
a Lygia e Cortázar
I
Sentou-se à mesa, sabia: não há que se respirar fundo, basta somente um sopro.
Preparou o pito (água e sabão), cochichou bem de leve como se contasse segredo ou soprasse vela sem querer apagá-la.
Apurou os olhos no côncavo da borbulha.

II
Súbito, preciso, soltou-se o globo no ar. E explodiu.

Atlântida

Sempre que voltava ao trabalho após o almoço, adormecia. E, quando o ônibus avançava pela avenida em direção ao mar, passava-lhe um pensar à-toa que aos poucos tornou-se um sonho recorrente, depois progressivo.
O coletivo passaria direto ao fim da avenida, mergulharia e, no fundo do oceano, todos iriam viver sem desejar mais a superfície. E ele se casaria com uma sereia.
Como um dia no parque, uma festa de fim de ano, um presente de aniversário, a lembrança dessa esposa o acompanhava e o agradava. Mais que isso, ansiava por ela.
Até que acordou submerso e, à visão reconfortante da cauda enorme, alegrou-se.

Espólio

Vivia numa alegria enorme, cabendo mal em si. Havia nascido grande, perto de adulto.
Seu pai - demiurgo o havia feito assim. Completo; à base de tinta em face lisa, alva e chã. Tinha amigos, nome e cor de olhos. Mais que isso, cosido e recosido, desfiado e retecido, tinha já história: plena, embora de curto enredo, intriga simples, desfecho claro. Sentia-se brioso.
E mais ainda, ao ter por certo, quando posto num cubículo escuro junto a outros parelhos seus, que dali sem tardança partiria rumo ao prelo. Ansioso sempre, de mais a mais, notava um fio de sol e a luz cegante, sentia ímpeto de... Antes, contudo, aumentado o aperto, o espaço de novo escurecia.
As vezes, de surpresa, eram recolhidos e postos à mesa; ele ficava convicto da viagem à prensa. Eram remexidos, embaralhados, uns apartados, outros riscados, uns amassados, outros dobrados... mas ele sempre voltava à gaveta fria e bafia. Com o tempo se foi recolhendo, perdendo todo o gáudio. E mesmo quando sentiu bruscos vacilos no móvel, fado algum lhe apontou a mais remota edição.
Da escrivaninha ouvia vozes raras, portas rangentes, mastigados silêncios. Sentia-se estático e inconcluso, década a fio em meio trevoso. A face desalvecia. Seus parelhos encarunchavam, bafiavam mais. Até que, às vozes próximas, ouviu: «escritor», «morreu».

Leia este tema completo a partir de 08/11/2010

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