sábado, 12 de março de 2011

Coluna de Manuel Fragata de Morais - O CACIMBO

Coluna de Manuel Fragata de Morais - O CACIMBO

Cedinho pela manhã, quase como sempre, enveredei pelo carreiro molhado que me conduzia à figueira brava. O frio apressava-me os passos e obrigava a que encolhesse os ombros, esticando os braços ao longo do corpo.


Tinha eu então nove anos e vivia a idade mágica do mato na qual, o caçador terrível que me suponha, fisga pendendo do bolso traseiro das calções remendados, kalubungu amarrado à cintura num cinto improvisado, partia para a matança magnífica das rolas matinais.

O capim, húmido das lágrimas nocturnas dos ndoki vadios, bordejava o estreito carreiro que aportava à lavra junto à qual se impunha a árvore sonhadora que me prendava quase todas as manhãs com uma sinfonia estrondosa de cru-crus, tchuin-tchuins, tfris-tfius, miriades infindáveis de cantos de aves.

Ao aperceber-me do bando de rolas encoleiradas do preto da dor, tive a deleitosa certeza de que, mais uma vez, sairia vitorioso da batalha que almejava. Por desejo meu, nem filho delas sobraria para cru-cruar seus óbitos tristes à floresta acolhedora. A pedra partiria, do cabedal entesado da fisga, certeira, tiro sibilante após tiro, o chão povoado de cadáver castanho emplumado, um após o outro.

Tinha eu então nove anos de feitiços e artes que hoje miseravelmente não possuo.

Tal era a minha insaciabilidade e a minha coragem, já que cedinho, de madrugada, os ndoki transformados em cobras e onças, ainda não tinham fugido para as moitas, à espera do incauto. As rolas tudo me faziam esquecer, uma única que matasse, pesava nos meus sonhos tanto quanto quarenta nduas arco-irizadas e outros tantos khende-khende enforcados nos laços invisíveis quando vinham debicar o barro preparado com sal, mais às perdizes laçadas nas sebes que protegiam a lavra.

Assim, apressava o passo, as rolas não esperam o preguiçoso, ou será o correr pela mata fora, nunca as alcançando, em seus voos de pau em pau. Esforçava a não intrusão de pensamentos maléficos à mente, os latidos dos cães na senzala cada vez mais distantes, quando o Cacimbo, tata Bangala, vindo não sei de onde, desceu sobre mim inesperadamente em abraço envolvente. O silêncio nasceu da árvore, da pedra e das penas de sumaúma que pendiam ao compasso do grito do cucu. Falou-me e tremi de medo, pensando que morreria e em breve estaria nos braços da sereia, bem entre as pedras e areis do fundo do riacho. Meus pés não ousaram dar mais um passo que fosse, invadido que me sentia dum canto doce, duma melodia de fascínios, em rendição total àquele que se me revelara não inopinadamente.

- Não temas, criança da esperança, sou a origem do rio, a consciência mandada dos antepassados, aquele que te ensinará os rumos do porvir -

E pasmado que fiquei!


Leia este tema completo a partir de 14/03/2011

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