domingo, 13 de março de 2011

Outra dimensão - Conto de Liliana Josué 

Outra dimensão - Conto de Liliana Josué

- Ando confusa, não sei em que mês estou, talvez Julho...então já é verão. Mas não é igual ao de outros tempos: indefinido, sem certezas, sem saber o que quer.
Está diferente, tenho a certeza de que está muito diferente.
Já não sou nova. Quantos anos tenho? Acho que noventa, ou... até mais um bocadinho. Vou perguntar.

Psst, venha cá. Quem é você? Sim, sim a Antónia, já sei. Está cá em casa para me dar de comer e fazer companhia. Diga-me lá, se faz favor, quantos anos tenho? Acho que me esqueci. Já noventa e dois? São muitos...! Obrigada Antónia você é simpática.

Gosto do meu vestido, é azul. Azul da cor que os bebés vestem. As almofadas da minha cama também são azuis. Eles não dizem, mas eu sei que é para condizer com os meus olhos.
A minha cama já se tornou incómoda. Mas o sofá deixou de poder comigo, atirava-me para o chão e depois as minhas pernas ficavam duras e com medo. Coisas complicadas; manias de sofá que já se acha com direito ao descanso e depois não quer ficar comigo, por isso cá estou eu na minha cama de lençóis brancos iguais à cor dos os meus cabelos.

Certas alturas ela também se zanga comigo: dá-me empurrões nas costas... e fazem doer. Até chega a empurrar-me para o lado, também quer que eu a deixe descansar. Tem de ter paciência, não posso andar sempre a mudar!?
Há dias que tenho cá visitas e fico muito feliz, até parece que o meu quarto se torna mais brilhante. O sofá mostra-se mais risonho e a cama mais condescendente. Algumas pessoas nem sei quem são, não as conheço, e muito menos dos nomes lembro, mas não me importo, fico contente na mesma.

Elas dizem-me coisas... e perguntam também. Eu gosto e até acho graça mas não sei as respostas... e a boca, para me contrariar, não quer falar. Então rio para não parecer mal educada. Mas é tudo bom, gosto de os ver cá.
O meu «pai» vem muitas vezes, ainda é novo, e gosta muito de mim, mesmo quando fica triste comigo. Faz-me festas e dá-me beijos, coitadinho.
Ele é engraçado, até me trata por mãe.

A minha mãe, essa é que já morreu há muito tempo. Que pena, sinto tantas saudades dela...às vezes até peço um retrato e ponho-me a chorar.
Encostado a uma parede está o meu piano preto. De estilo e muito antigo, até tem umas coisas para colocar velas. Bem bonito, sem qualquer dúvida. Mas acho que está zangado comigo, faz-me caras feias. Deve ser por eu já não tocar. Tenha paciência, eu já não me recordo como se toca... mas tenho pena que ele se sinta aborrecido, sempre fomos amigos, eu dava-lhe muitas festas e mimos, e até cheguei a emprestá-lo a meninos para brincarem com ele. Mas eu ficava sempre de olho neles. Este piano era o meu tesouro, com ele vivi muitas alegrias e tristezas e, os meninos, ás vezes eram um bocadinho distraídos ou mesmo descuidados... mas tenho saudades deles.

Não sei porque me dói o corpo, principalmente os braços e as pernas, custa-me muito movê-los, eu bem tento mas é tão difícil... com esta minha teimosia chego a cair e depois não consigo levantar-me.
Um dia destes quis arrumar os meus sapatos e escolher os mais bonitos para ir passear, não sei que fiz de mal, mas senti uma impressão estranha na cabeça e fiquei com muito sangue a correr pela minha cara, e como não consigo falar muito bem (acho que me esqueci) não pude chamar ninguém. Ainda fiz alguns esforços para me ouvirem mas não valeu de nada porque demorou tempo a chegar alguém... .

Leia este tema completo a partir de 14/03/2011

1 comentário:

  1. Olá, Liliana Josoé,
    Que bonito está este conto! Os meus parabéns.
    Um abraço
    Cremilde Vieira da Cruz

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