domingo, 10 de outubro de 2010

O meu gato - Reflexos de reflexões - Dois textos por Liliana Josué

O meu gato - Reflexos de reflexões - Dois textos por Liliana Josué


O meu gato

O gato roçou-me as pernas num miar ansioso, misto de tristeza e revolta. Fixo-o longamente. O seu olhar redobra de aflita expressão e o miar passa a sons guturais fortes, cavernosos ; a respiração acelera-se e o corpo torna-se cada vez mais tenso. Esta é a sua forma de transmitir o mal que sente. Inclino-me para ele, digo-lhe frases mimosas e adocicadas num tom de voz piegas tentando um laivo de consolo. O animal suspende tudo, mal respira com receio de que o momento acabe. Pego nele com jeitinho e juntos afundamo-nos no sofá.

Coço-lhe a cabeça, a barriga, o pescoço e lá fica ele num sereno ronronar de patas para o ar semi-dobradas , olhos fechados e ligeiro sorriso no focinho. Assim permanecemos até que a vontade alcance um de nós e nos faça saltar pela janela para que nos misturemos com o resto do mundo.
Alheio a tudo o telefone grita, o bichano indiferente continua a dormir placidamente a meu lado limitando-se a arrebitar ligeiramente uma orelha.

Deito a mão ao aparelho, fixo o mostrador luminoso e leio um nome apelativo, apetecido mesmo, mas não atendo, e assim ficamos desafiando o tempo. O nome acaba por desistir e eu continuo a fitar o pequeno ecran já com saudades.
O gato dorme impávido, já não tem medo. Abandono o telefone sobre a pequena mesa e ao reclinar-me novamente no meu encosto macio o aparelho redobra os protestos. Deixo-o tocar enquanto penso como seria bom que aquele nome estivesse junto a mim… eu a afagar-lhe os cabelos, a beijar-lhe os olhos, a tocar-lhe o corpo e por fim fazermos amor.


Reflexos de reflexões

Sufocamos num embaraço de pensamentos e não acontece nada. Surgem imagens que tombam, trovoadas que rebentam, sois que ardem… mas não acontece nada. A cabeça trabalha em remoinho ou até mesmo em espiral e os nossos murmúrios agitam-se no seu próprio interior. Crenças e vontades são cuspidas no refluxo dessa espiral revoltada. O corpo inerte está ausente da cabeça, apenas o bater cardíaco se acelera.

Os braços resvalam indolentes pelos do sofá e as extremidades dos dedos, como bailarinas em pontas, tocam o chão de madeira morna simulando uma cadenciada harmonia.
As pernas e os pés alongam-se no almofadado banco descansando caminhadas talvez inventadas.
O tronco acomoda-se no macio encosto acabando por curvar-se ligeiramente em obediência ao protesto dos ombros.

E é o abandono, a inexistência de medos e euforias na calma dos dias quentes. Apenas um coração se acelera em ânsias desconhecidas, mas esse não se vê, não conta...

Leia este tema completo a partir de 11/10/2010

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