domingo, 23 de janeiro de 2011

Coluna de Manuel Fragata de Morais - O Fantástico na Prosa Angolana - JACINTO LEMOS

Coluna de Manuel Fragata de Morais - O Fantástico na Prosa Angolana - JACINTO LEMOS

Nasceu em Icolo e Bengo a 21 de Janeiro de 1961, e, para além de ser um prosador nato que utiliza um cativante discurso assente no linguajar popular, é ainda um homem das artes cénica e plástica. Esta sua obra, da qual retirámos alguns excertos, mereceu o Prémio Sonangol de Literatura 2001, na altura o maior galardão literário nacional. Tem vários livros publicados.

A DIVIDA DA PEIXEIRA

– Não mi matam os filho! Mi perduam!, mi perduam só!– pedia Sá Rosa, ajoelhada em frente as amigas – eu não sabia! Juro, não sabia... que essa dívida era pra si pagar com a vida dos filhos. Mana Fatita, mana Marta, mana Maria Simão, favor... favor minhas amigas, minha conpanhera do uenji (negócio), recebem o dinhero... aceitam o dinhero.
Com o dinheiro embrulhado no avental entregava ora numa, ora n’outra, que só lhe olhavam em silêncio.

– Mana Maria Simão, quando ti bati a porta pra ti pidir o impresto deste dinhero, bati com bom curação, mana Maria. Bati com bom curação. Não sei porquê mi fizeste esse pecado. Devias mi falar, mana Maria... devias mi falar!, que este dinhero qu’stamos a ti imprestar é dinheiro de uanga (feitiço) porque nós samo já parente. Samo já família. Aqui no bairro, minha família é você que acompanha a minha vida. Que sabe onde passo, que sabe o que faço pra criar esses môs jingongo (gémeos); como é que m’i’sconde esse segredo? Him?!, como é que mi’sconde esse segredo mana Maria... como é?!... – Segura na ponta do pano, limpa as lágrimas, assoa o ranho, e vira pra as duas senhoras – mana Fatita, m’ajuda só dessa vez... não vou fazer mais impresto sim pruguntar!... Nunca mais vou fazer isso... mana Maria, favor, mi recebe o dinhero. Sei qu’stou errada. O mô erro foi de pidir o impresto sem pruguntar a manera de como pagar... devia pruguntar. Mas também a mana Maria Simão, devia mi falar, ela não mi falou...

Sá Marta faz sinal, pra Sá Rosa lhe seguir até no quarto. Sá Rosa poisa o embrulho do dinheiro na frente das duas (Nga Fatita e vizinha Maria Simão, a dona da casa), levanta e segue Sá Marta até no quarto. No quarto, junto da cama, havia uma mala, mala de porão. Por cima da mala, havia uma capela com muitas velas acesas. Sá Maria levanta a capela, poisa por cima da cama, abre a mala e diz pra Sá Rosa:

– Dinhero é que temos demais. Venha ver. Incosta.
Sá Rosa como estava parada junto da porta, chegou perto, encostou.
– Veja! A lhe apontar dentro da mala.
– Êh!!? – Se espanta Sá Rosa quase a gritar – isso é o quê mô deujo?!!
A mala estava cheia de dinheiro.

Sá Rosa nunca viu tanto dinheiro. Costuma só ouvir falar, que essas pessoas que trabalham com uanga de lumbongo (feitiço de obter dinheiro), têm malas cheias de dinheiro. Mas nunca viu. É a primeira vez. Ele é mesmo grande peixeira. Peixeira de fama. Conhecida em todos os bairros da cidade, como a Nga Zefa, Nga Ximinha, Nga Tonha Sá Minga, Sá Júlia, e outras. Mas nunca viu tanto dinheiro. Sá Marta a segurar a tampo da mala, olhava na Sá Rosa com um olhar de quem está a dizer:«’Stás a ver o uanga que temos? Intrega os filho, se não queres que ti acontece o pior...» e fechando a mala diz:
– Dívida é dívida!
– Mas... mana Marta... eu...
– Dívida é dívida! – Lhe corta a palavra com voz seca.
– ‘Stá bem. Dívida é dívida. Eu sei. Mas a mana Maria Simão, podia mi falar. Ela não mi falou. Não mi abriu. E logo-logo dois filho... eu que só tenho dois, não acha que é muito?
Sá Marta não responde, lhe segura no ombro:
– Vamos, vamos na sala.
E foram até na sala. E na sala Sá Marta apanha o dinheiro e entrega na Sá Rosa:
– Toma, leva o dinhero!
– Ai mana Marta, favvor, m’ajuda já!...
– Leva a merda do tô dinhero! – Berra a Nga Fatita. – Não queremos dinhero, não intendeste ainda!
– Mana Fatita, mi perdua já... mi perdua mana Fatita!... Não mi mata os filho. Mi perdua, eu não sabia, mana Fatita...
- Maria tira daqui a tua vizinha! – Segundo berro de Nga Fatita.
– Mana Fatita não mi trata assim. Mi perdua, se ti fiz mal... mi perdua mana Fatita!...
– Maria, possas! – Outro berro de Nga Fatita. – Tira essa besta daqui pra fora, oh!
Vizinha Maria Simão segura na Sá Rosa:
– Rosa, vamos! Sai! Sai!...
– Mana Maria, m’ajuda só...! Minha vizinha, minha irmã...
– Sai! Sai!...
– Não mi trata ansim, mana Maria!, não mi trata ansim...
– Sai, sai pá!, sai... A lhe empurrar.
– Ai mana Maria ajuda os tôs jingongô! Não mata os amigo do tô filho!... tô filho vai andar brincar com quem? Quem vai andar lh’acudir?...

Leia este tema completo a partir de 24/1/2011

2 comentários:

  1. QUE COISA INCRÍVEL: VI SEMELHANÇAS NESSE TEXTO POPULAR CM AQUELES QUE FAÇO NA LÍNGUA CAIPIRA BRASILEIRA.ADOREI! REPITA TEMAS NESTE MOTE!pOR FAVOR!
    ACAS

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  2. Acas

    Embora eu ache pouco possível que se leia tudo aquilo que eu escrevo e digo(seria maçador à brava) eu tenho afirmado essas semelhanças entre fantásticos (sejam eles africanos, caipiras ou outros - o João tem bastante no crioulo - e mesmo portugueses ou europeus em geral). A diferença essencial que vejo, por vezes, é entre o fantástico «urbano» e o fantástico campestre, sendo que o fantástico urbano muitas vezes é uma deslocação do campestre para tonalidades próprias.

    Abraço e diga isso ao Fragata de Morais também. O Blogue dele vem na página dele.

    Daniel

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