domingo, 30 de janeiro de 2011

O gato preto - Reflexão de Michel Crayon

O gato preto - Reflexão de Michel Crayon

Daquela vez subi as escadas em câmara lenta. Sentia-me verdadeiramente cansado e por mais estranho que pareça quando cheguei lá acima (eram dez andares sempre a subir) senti-me como se tivesse subido os 180 degraus da mesma forma normal dos outros dias.


O facto de ter escolhido o sistema da câmara lenta se resultou resultou muito pouco e senti-me frustrado, não com aquela frustração corrente do dia a dia quando as coisas não correm bem mas senti antes uma frustração revoltada dizendo para mim mesmo que não tinha valido de nada aquele trabalho de subir os degraus em câmara lenta e senti-me irritado porque cheguei à conclusão que tinha feito figura de parvo, não que alguém me tivesse visto, senão o porteiro, mas deveria ter parecido mesmo estúpida aquela coisa de subir degraus em câmara lenta.

Sabem como é, a câmara lenta, e foi isso mesmo que eu fiz: quando se filma aumenta-se o tempo de exposição do fotograma ou fazem-se mais fotogramas para o mesmo tempo e no meu caso eu subi cada degrau com esse aumento de tempo pensando que assim me cansava menos mas nada disso: praticamente cansei-me o mesmo, ou até mais, não sei, com a agravante de ter de estar a calcular mentalmente o tempo tão exacto quanto possível de cada gesto, de cada avanço de uma perna, depois de outra e o balanço de um braço e depois de outro.

Não aconselho a ninguém, agora que sei, agora que descobri isso, a subir degraus ou mesmo a andar em câmara lenta. Não resulta! O esforço é o mesmo só que dividido por mais tempo e é assim como misturar água doce na água salgada: dilui-se o sal mas a quantidade do resíduo salino é igual. Que estupidez a minha!! Devia ter pensado nisto antes...

Dito isto quando cheguei a casa dela estava não só mais derreado do que estava quando comecei a subir, como estava irritado e sentia na pele da face agora crestada a falta do ar condicionado dos outros dias e aquela aragem pequena mas refrescante que o contínuo mandava do rés do chão rodando o botão para o lado do sinal mais por ser para mim.

Era bom cliente, eu, naquele prédio e o porteiro sabia-o mas desta vez pareceu-me ausente não de corpo, porque ele estava lá, com a sua farda cheia de medalhas e galões à tropa, mas porque estava e não estava no seu posto.

Ou seja, o corpo dele (e os galões e as medalhas) estavam lá plantados no sítio do costume, atrás de um balcão coberto a formica, mas o espírito, a alma, o sopro vital dele, aquela coisa que distingue as pessoas vivas das pessoas mortas, a respiração, o bafo, andavam nos limiares do coma.

Disse-me depois a Arminda que lhe tinha falecido um gato, um pretinho que frequentava o terceiro andar e que eu não devia conhecer porque ele nunca ia para as escadas mas eu disse-lhe que não senhor, que era capaz de ser aquele que eu tinha visto na última vez que lá tinha estado entre o primeiro e o segundo andar.

A Arminda disse-me então que sendo assim era bem provável que eu até o tivesse visto no dia da sua morte porque ele, o porteiro, tinha encontrado o seu corpinho desfalecido precisamente na zona do rés do chão, entre as caixas vazias de uma arrecadação, entalado (coitado) entre cinco resmas de papel A4 e uma impressora de fita de carbono que tinha tombado de uma estante metálica daquelas cai não cai.

Mas deixemos isso, disse-me ela enquanto me enchia um copo de vinho do Porto para me fazer subir a alma, disse ela, coisa que eu bem precisava, de uma alma subida depois daquela subida e peço perdão pela redundância.

Os processos de luto do porteiro eram assim mas este era mais profundo, acrescentou-me a Arminda, e ela já lhe tinha conhecido vários lutos felinos que lhe permitiam agora pronunciar-se da forma peremptória como o fazia.

Ele tinha um gato por andar, o que perfazia catorze porque eram treze andares mais o rés do chão e por cada gato tinha um amor sempre especial. O que morrera agora, um dos pretinhos, era especial como o eram todos os outros, não por ser preto, havia mais pretos (seis para além do defunto), mas porque - no dizer que ele tinha dito à Arminda - era um gato que lhe tinha sido oferecido por uma pessoa que ele considerava especial e de certa forma pode dizer-se agora, sem grande dificuldade, que ele, porteiro, via talvez naquele gato um pouco daquilo que via na pessoa que lho oferecera.

Leia este tema completo a partir de 31/1/2011

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